quarta-feira, 3 de junho de 2009

Instante

Às três e meia da madrugada acordei. E logo elástica pulei da cama. De manhã acordo cheia de frutos. Vim te escrever. Quer dizer: ser. Escrevo-te sentada junto de uma janela aberta no alto do meu atelier. Escrevo-te a medida de meu fôlego. De nada tenho vontade: estou pura. Não te desejo esta solidão. (Agora vou acender um cigarro). Talvez volte pra máquina ou talvez pare por aqui mesmo para sempre. Cada coisa tem um instante em que ela é. Quero apossar-me do é da coisa. Quero possuir os átomos do tempo. Quero captar o meu é. Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me então com teu corpo inteiro. Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos. O que escrevo é um só clímax? Meus dias são um só clímax: vivo à beira. Minhas desequilibradas palavras são o luxo do meu silêncio. Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais. Uma espécie de doida, doida harmonia. Posso não ter sentido mas é a mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa. A ventania sopra e desarruma os meus papéis. Não quero perguntar porque, pode-se perguntar sempre porque e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que segue de uma pergunta sem resposta? O que te falo nunca é o que te falo e sim outra coisa. Mais que um instante, quero o seu fluxo. Quero a vibração do alegre. Não é confortável o que te escrevo. Não faço confidências. Estou viva. Mas sinto que ainda não alcancei os meu limites, fronteiras com o que? Sem fronteiras, a aventura da liberdade perigosa. Eu sou antes, eu sou quase, eu sou nunca. E tudo isso ganhei ao deixar de te amar. Procuro me distrair do medo. O que sei é tão volátil e quase inexistente que fica entre mim e eu. Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. Sou sozinha, eu e minha liberdade. Não sei sobre o que estou te escrevendo. Escrevo-te porque não me entendo. Há muita coisa a dizer que não sei como dizer. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que cegamente me obedeço. A verdade está em alguma parte: mas inútil pensar. Não a descobrirei e no entanto vivo dela. Hoje é noite de lua cheia. Então fujo fechando os olhos. Porque lua cheia é de uma insônia leve: entorpecida e dormente como depois do amor. Será que isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento? Raciocínio é que não é. Vou te fazer uma confissão: estou um pouco assustada. É que não sei aonde me levará esta minha liberdade. Tenho certo medo de mim, não sou de confiança, e desconfio do meu falso poder. O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Estou melancólica. É de manhã. Mas conheço o segredo das manhãs puras. E descanso na melancolia. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Tais momentos são meu segredo. Eu chamo isso de estado agudo de felicidade. Estou cansada. Meu cansaço vem muito porque sou pessoa extremamente ocupada: tomo conta do mundo. Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem pra hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo. Fantástico: o mundo por um instante é exatamente o que o meu coração pede. Este instante é. Você que me lê é. Você que me lê que me ajuda a nascer. Lê a energia que está em meu silêncio. Espere: está ficando escuro. Mais. Mais escuro. Estou de olhos fechados. Nasci. Sou um coração batendo no mundo. Sou pura inocência. Sou-me.

[adaptação que eu fiz do água viva da clarice lispector, um dos meus preferidos. lembranças minhas e da jaja, este instante foi pra sempre.]

2 comentários:

Jamile Salomão SIlva disse...

Nosso instante eternizado.
Amo demais.

Unknown disse...

ah,Ana!... promises,no promises.